A fotografia foi uma das mais marcantes invenções do século XIX. E se talvez possamos já considerar esta asserção um lugar-comum, a verdade é que o impacto do aparecimento da fotografia nem sempre tem sido compreendido em todo o seu alcance. Efectivamente, a fotografia veio desvelar novas possibilidades e sensibilidades às artes plásticas e permitir, mais tarde, o aparecimento do cinema, abrindo caminho para a multiplicidade de meios audiovisuais que temos hoje ao dispor. A chegada da fotografia veio mudar drasticamente formas de relacionamento; e ilustrar profundas mudanças sociais ocorridas durante o Romantismo, associando-se claramente a uma época. A fotografia permitiu ainda acelerar um processo embrionário de uniformização cultural, já iniciado com a época dos Descobrimentos e que hoje é vulgarmente conhecido como Globalização. A crescente profusão de imagens de monumentos, de cidades e de paisagens exóticas vai originar fenómenos de imitação, de emulação, alargando os horizontes culturais e artísticos do homem contemporâneo, abrindo novas portas para a investigação científica. As imagens fotográficas passam a substituir as palavras – na frase do físico Janssen, “a chapa fotográfica é a retina do sábio”.
Contudo, a fotografia sofreu também um processo de banalização. O período áureo da circulação dos postais ilustrados em Portugal – início do século XX– foi também aquela época em que todos puderam e quiseram ter acesso à fotografia. Mesmo as famílias mais humildes dos locais mais recônditos poderiam agora tirar o seu retrato, deslocando-se a qualquer núcleo urbano mais próximo de pequena dimensão, uma vez que os fotógrafos profissionais espalhavam-se já praticamente por todo o país. Para os estratos populares das regiões mais interiorizadas, o primeiro retrato fotográfico era um objecto de grande significado e, por vezes, de certa negação da sua própria condição social, ao ponto de ser habitual pedir às pessoas mais abastadas da terra o empréstimo das roupas que iriam aparecer no retrato (especialmente no que tocava às crianças). Foi também no início do século XX, quase vinte anos depois das primeiras experiências do fotógrafo gaiense Albino Barbosa, que o retrato fotográfico começou a surgir nos cemitérios portugueses, permitindo a uma certa classe média urbana mostrar a imagem da sua própria condição, uma vez que não podia suportar os custos exorbitantes da execução de estátuas ou bustos, assim como de mausoléus em cantaria finamente lavrada. Paralelamente, generalizava-se o recurso ao retrato para facilitar a identificação, quer ao nível da administração central (bilhetes de identidade, passaportes, processos individuais de funcionários do Estado), quer ao nível da investigação criminal e mesmo para acesso a determinados serviços (cartões de passe para os transportes públicos, para o Jardim Zoológico, etc.).
É interessante notar que pode ser aferido o nível socioeconómico de uma determinada família ao longo dos últimos 150 anos através do seu espólio fotográfico, estando este ainda intacto: a época em que tira os primeiros retratos, a época em que recebe as primeiras ofertas de retratos e os locais onde estes são tirados; todos estes indícios podem ser preciosos para caracterizar uma família. O mesmo poderemos afirmar relativamente aos espólios familiares de fotografia de exterior, ainda que com um considerável desfasamento temporal, pois a generalização da fotografia de exterior em Portugal dependeu muito da progressiva aquisição de câmaras portáteis por parte de amadores, chegando à situação actual em que praticamente todos possuem, pelo menos, uma máquina fotográfica, nem que seja incorporada num outro aparelho electrónico. É tendo em conta este desfasamento temporal entre a generalização do retrato e a generalização da fotografia de exterior que temos de avaliar a importância do Fundo da Foto Beleza, do Porto, o primeiro a integrar o Espólio Fotográfico Português.
A cidade do Porto desempenhou um importante papel na difusão e afirmação da fotografia em Portugal, enquanto expressão artística. Aqui trabalhou o inglês Frederick William Flower (1815-1889), a partir de 1835 – um dos primeiros fotógrafos estrangeiros a residir em Portugal. A Academia de Belas-Artes do Porto foi precursora, em 1854, da introdução da fotografia em exposições de belas-artes. O Centro Artístico Portuense, fundado em 1879, acolheu, nesse mesmo ano, as primeiras conferências da história da arte nacional, de Joaquim de Vasconcelos, muito provavelmente apoiadas em documentação fotográfica. Nessa época, e já desde 1874, Emílio Biel (1838-1915) desenvolvia aquele que foi considerado por António Sena como “o mais importante trabalho de levantamento e documentação do país durante o século XIX”. E em 1886, graças à iniciativa da revista A Arte Photographica, editada pela Photographia Moderna - estabelecimento de fototipia da cidade do Porto, tem lugar no Palácio de Cristal desta cidade “a primeira e última exposição internacional de fotografia jamais efectuada entre nós”. É no âmbito desta realidade que devemos integrar o aparecimento no Porto da Fotografia Beleza, fundada por António Beleza em 1907, na Rua de Santa Teresa.
Antes desta casa, António Beleza tivera a sua “Royal Foto” na Rua do Almada, 122, espaço de grande tradição fotográfica na cidade. Aí estivera a Fotografia Fritz, que o já referido empresário Emílio Biel acabaria por comprar. Quando Biel passou o seu estúdio para o Palácio do Bolhão, em 1888, António Beleza ocupou o espaço da Rua do Almada e, como era habitual, pode ter ainda adquirido parte do espólio das chapas, das máquinas e dos “decors”. Em concreto, sabe-se que após a morte de Emílio Biel, António Beleza comprou parte do espólio da Casa Biel, vendido em hasta pública no ano de 1916. É na Fotografia Beleza, da Rua de Santa Teresa – a partir de 1918 dirigida por Moreira de Campos e, em 1935, tendo como único proprietário António Lopes Moreira – que a burguesia do Porto se revê, possuindo o estúdio uma elegante sala de espera, onde se exibiam retratos da melhor sociedade do Norte.
De facto, a Fotografia Beleza deixou um conjunto de várias centenas de milhares documentos fotográficos - um dos maiores espólios que, até ao momento, se conhecem em Portugal, nos quais se incluem mais de 10 000 fotografias em chapas de vidro, de paisagens, nomeadamente paisagem urbana. As restantes espécies são retratos de pessoas do Norte, com relevância para o Porto e arredores. Este espólio, provavelmente o mais importante fundo do século XX proveniente de umacasa fotográfica portuguesa, inclui ainda a documentação textual de suporte, muito particularmente, os livros de registo dos trabalhos efectuados e encomendados, em número de 375 (352 de pequeno formato, 8 de grande formato e 15 de imagens), os quais, pormenorizadamente registavam o nome e morada do cliente, número de identificação, o formato tipo e a data dos mesmos.
Na sequência do Projecto apresentado em 2007 ao Programa «POS_Conhecimento», intitulado «O Espólio da Foto Beleza», coube ao Centro de Estudos da População Economia e Sociedade inventariar e legendar durante doze meses perto de 300.000 espécies fotográficas, que a partir de agora, passam a estar disponíveis no portal do Espólio Fotográfico Português, constituindo o volume que recentemente se publicou uma reduzida amostragem da sua riqueza.
Fernando Sousa
in Espólio Fotográfico Português
Vivam as bibliotecas vivas!
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