quarta-feira, 8 de novembro de 2006

um pouco do meu tempo todo


fotografia de Helena Laranjeiro
Eu seguia rente às casas pelo passeio estreito, rasando os peitoris das janelas postas sobre a rua. Numa delas, um rosto sulcado pelos anos, mas a que a idade não retirara vida, oferecia-se, sereno, a quem passava, enquanto o canário, na gaiola ao lado, desfrutava a visão do que não tinha no espaço a que se via confinado.
A manhã ia a caminho do meio sob um sol de Primavera que pousava mansamente nas fachadas e o meu dia enchia-se de pequenos nadas. Foi quando decidi parar e dar-lhe um pouco do meu tempo todo para preencher o todo tempo dela e, daí a nada, já me abria a porta, depois de recolhido o canário e fechada a acessibilidade da janela.
No pátio apontou com carinho os canteiros e os muros atapetados com centenas de conchas pela mão paciente do marido e destacou o nicho com a imagem da Senhora de Fátima que mantinha acesa a fé com que ele o havia construído.
Lamentou o gato de barro com as pernas partidas à entrada da cozinha e ergueu a tampa do tacho que sobre o fogão lhe guardava a comida.
Mostrou-me a copa com uma pequena mesa onde seria posto um único prato e levou-me, orgulhosa, à sala de jantar enfeitada com as rendas do seu crochetar.
Na salinha o televisor conversava com o canário e no quarto que fora do casal havia recordações por todo o lado: a ausência das bonecas cuja lembrança não quis guardar e a presença dos peluches que ainda sentia gosto em conservar. Mas mais que tudo a sua fotografia quando rapariga e a do marido antes da partida.
Chamava-se Francisca, tinha 85 anos e, desde que ficara só da noite para o dia, ia gerindo a saudade e a solidão como sabia. A lida da casa era toda sua, com pequenas costuras pelo meio, tudo ao som bem alto do televisor que lhe dava a ilusão de um companheiro. As tardes, essas, eram para o sol da Avenida onde achava casuais conversas e assegurava às pombas a comida.
Perdera a esperança do calor de um gato, ficando-se pela companhia de um canário, mas do fundo do peito saía-lhe ainda o gemido de um cântico que nunca esquecera e falava do amor por ela guardado para os filhos que nunca tivera.
Quando me reconduziu à porta, trazia sorrisos a passear nos caminhos do rosto e as suas mãos, apertando as minhas, faziam-se demorar, como se receasse quebrar os nós do frágil laço acabado de atar.
A ela não disse nada, não fosse desiludi-la com o meu falhar, mas a mim mesma prometi que iria voltar.


Helena Laranjeiro
Braga, 8 de Maio de 2006

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